Anais do Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO
VOL. VII, 2021
PSICOLOGIA SOCIAL & LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE
ISSN 2965-226X
PSICOLOGIA SOCIAL & LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE
ISSN 2965-226X
Aline Rebouças Azevedo Soares
Resumo: Muitos documentários sobre transgeneiridade vêm sendo produzidos nos últimos dez anos no Brasil. No entanto, o cenário sociopolítico do país tem se mostrado cada vez mais intolerante com a diversidade de gênero, ao passo que flerta com modos autoritários de gestão pública, especialmente após as eleições presidenciais de 2018. Diante da ambiguidade desse contexto, interessa analisar o potencial emancipatório dessas produções, as quais, de modo também ambíguo, elaboram narrativas de vida de pessoas trans* numa sociedade que entende e reproduz a cisgeneiridade como norma. Uma das questões dessa pesquisa de doutorado em andamento é: existe uma produção cisgênera no olhar da câmera que produz documentários sobre transgeneiridades e pessoas trans*? Se sim e a afirmativa dessa questão é uma hipótese com a qual trabalho , como tal atravessamento, interfere na idealização, planejamento, elaboração de roteiro, bem como na própria forma filmica, nas escolhas técnicas de enquadramentos, ângulos, tipos de luz, sonoplastia e montagem, dentre outros aspectos da produção de um documentário? Pretendo, com esse recorte de pesquisa de doutorado em andamento, compreender o potencial emancipatório e as fragilidades do documentário que se apresenta como narrativa biográfica, mais especificamente de pessoas trans*. Compreendo que pensar essas narrativas como expressões mobilizadoras de resistência política diante de um governo federal brasileiro conservador de extrema direita é também pensar suas limitações diante da influência que se pretende hegemônica e naturalizada da cisgeneiridade. Fazer esse reconhecimento é relevante não apenas para o campo da produção fílmica, mas também para a contribuição com de uma teoria crítica brasileira da cisgeneiridade que se faz urgente, diante da persistência do alto número de assassinatos por transfobia e das muitas outras formas de violências que precarizam as vidas de populações trans*. A pesquisa pensa o documentário como um dispositivo profanador de dispositivos, em acordo com a proposta política de Giorgio Agamben (2005; 2007) de profanar os dispositivos para nos libertarmos deles. Tal característica subversiva foi bastante explorada por Eduardo Coutinho (1997), como quando afirma que, esteticamente, a escolha de manter a presença da câmera e de pessoal técnico dentro do enquadramento ou de preservar, na edição e montagem, ruídos "acidentais", como o latido de um cachorro ou o toque de um telefone, são indicativos de uma produção que prima pela verdade da filmagem. Expor contingências e imprevisibilidades transcorridas nesse tipo de produção audiovisual seria, portanto, uma forma de mostrar legitimidade e, por vezes, uma finalidade crítica que perpassa tais escolhas estéticas, que indicam o potencial emancipatório do documentário. Esse estudo também parte do aspecto social do termo enquadramento, discutido por Judith Butler (2015), tendo em vista o diálogo possível com o termo no vocabulário referente aos recursos técnicos da fotografia e de dispositivos audiovisuais. Isso permite explorar de que maneira o enquadramento como processo social dialoga com o enquadramento da câmera em seus aspectos técnicos. Para elaborar uma reflexão critica sobre os atravessamentos da cisgeneiridade na produção do olhar da câmera, acredito na necessidade de trazer ao referencial teórico estudos realizados por pessoas trans*, como Jota Mombaça (2020; 2021), Ian Habib (2018; 2020), Renata Carvalho (2019; 2020) e Dodi Tavares (2018). É, ainda, uma oportunidade para tensionar esses estudos contemporâneos com teorias que já conhecemos. Proponho, com base nos procedimentos e resultados que serão obtidos, um percurso metodológico para análise de produções audiovisuais que possibilite apreensões e estudos da linguagem e técnicas cinematográficas, as quais também podem ser consideradas como elementos narrativos (enquadramentos, movimentos de câmera, cortes, montagem, etc.), em concomitância à análise de narrativas verbais dos sujeitos em tela, por exemplo. A metodologia está se constituindo no decorrer da pesquisa, através de articulações entre análise fílmica e análise imanente do discurso, amparadas por uma pesquisa bibliográfica que vem se desenvolvendo em paralelo e em consonância com as análises, constituindo-se de obras de Theodor Adorno (2003), Jacques Aumont (2007), Jonathan Crary (2012; 2013), Aby Warburg (2003), Walter Benjamin (1987) e Georges Didi-Huberman (2011; 2012; 2017), entre outras. O corpus da pesquisa é constituído de cinco filmes documentários: Katia (2012), O vôo da beleza (2012), Meu corpo é político (2017), Bixa Travesty (2018) e Lembro mais dos corvos (2018). O critério de seleção considerou o envolvimento de pessoas trans* na produção das obras. Acredito que reflexões sobre os atravessamentos da cisgeneridade na construção do olhar, assim como a elaboração desse percurso metodológico voltado a análises de produções audiovisuais poderá contribuir com pesquisas em Psicologia Social Crítica que venham a trabalhar com corpus desse tipo. Podem, ainda, apontar a urgência de elaboração e discussão de uma teoria crítica brasiliera da cisgeneiridade.
Palavras-chave: documentário; cisgeneiridade; teoria crítica.